O rapaz que habitava os livros
Barafustaram comigo, nem escutaram o que eu queria
que entendessem. Diziam que os livros queimavam os olhos, eram diurnos, não
serviam para as noites. As regras do nosso colégio interno, para meninos
casmurros como eu, mandavam assim.
Queriam os livros no corredor. As luzes apagadas às
nove.
Eu ainda deitei mão a alguns volumes, toquei-lhes
brevemente igual a quem cai num precipício e procura agarrar-se, mas não me
deixaram nada. Apenas o candeeiro já apagado, como se a luz tivesse morrido de
tristeza.
Adormeci muito mais tarde, de todo o modo. O
coração rasgado em papelinhos pequenos. E uma gula esquisita embrulhada no
estômago parecia dizer que eu não havia jantado.
Fui ver a minha nova estante logo pela manhã.
Era um bocado de espaço arranjado entre tralhas
meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são para
sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria
natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar
eternamente.
Alguém colocara uma pequena placa dizendo: não
alimente os animais. Fiquei sem saber se queriam dizer que os livros eram
bichos comendo as nossas ideias ou se seria eu um devorador de páginas,
alimentado de palavras como as histórias. As histórias podem comer muitas
palavras.
Pensei: os meus queridos livros. Era o que pensava
e sentia: os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem vivos e
pudessem sofrer. Como se pudessem também entristecer.
Gostei de colocar a hipótese de os livros serem
como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objectos
cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente,
eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que
a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência.
Os livros estão esbugalhados a olhar para nós.
Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados a olhar
para nós.
Os meus colegas ficaram todos a rir-se para mim. Eu
era conhecido como o rapaz que perdia a hora de dormir. Tinha a cabeça na lua,
diziam. Não me importei nada. Rirem-se de nós pode ser só um erro no ponto de
vista. E eles, todos eles, estavam errados.
A primeira vez que vi um livro, que me lembre, era
um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque como se
fossem uma colorida flor contente.
Podia ser uma caixa esquisita para arquivar pétalas
secas, podia ser para guardar documentos ou cartas de amor. De perto, era
afinal um livro muito branco, cheio de palavras impressas. Julguei que podia
ser um bordado miudinho. Um enfeite para que as páginas ficassem bonitas.
Pensei que fosse uma prenda de enxoval.
Depois, compreendi, era o modo silencioso das
conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos
conversar com Camões, Shakespeare, machado de Assis, mesmo que tenham morrido
há tantos anos.
A morte não importa muito para os livros.
Mais tarde, aprendi que os livros acontecem dentro
de nós. Claro que eles podem ser bonitos de se ver, mas são sobretudo incríveis
de pensar. Eu disse que ler é como caminhar dentro de mim mesmo. E é verdade.
Quando lemos estamos a percorrer o nosso próprio interior.
Uma menina do colégio perguntava-me sempre se eu
queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim. Era igual a
ficarmos cheio de delicadezas a fazermos de conta que adorávamos de tudo: os
puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas da
professora, a sopa de beterraba à hora de jantar no refeitório ou o cão zangado
do guarda nocturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta que o
mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo
maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.
Um dia, eu disse: vamos brincar à beleza das coisas
que se pensam, como as que se lêem. Porque as coisas que se lêem precisam de
ser pensadas. E ela perguntou: as que existem ou as que não existem? E eu
disse: todas. As coisas todas que pudermos imaginar.
Então, ela propôs: pássaros com trombas de elefante
a voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Rimos muito
e eu exclamei: que lindo. Repeti, lentamente: pássaros com trombas de elefante
a voar sobre cabeças de mulheres com cabelos de raízes de árvores. Depois
acrescentei: chávenas de chá com bocas falantes que ferram as mãos de quem as
tenta pegar. Rimos muito e ela exclamou: que lindo. Repetiu: chávenas que
ferram.
Ela disse: carros com pneus feitos de batatas
gigantes que têm pêlos como as pernas dos homens e a transportar famílias de
galinhas felizes. Rimos e eu exclamei: que lindo, adoro galinhas felizes.
Repeti: carros com famílias de galinhas felizes.
E se fosse um homem com tartarugas ao invés de
olhos? Ia ver muito devagarinho. E outro que tivesse um canguru ao invés de boca?
Ia falar aos saltos.
Uma árvore que tivesse braços de pessoa ao invés de
troncos e segurasse ninhos de cegonhas nas mãos. Que lindo! Depois, eu disse:
os meus pais a darem um beijo. E os meus avós. E ela respondeu: e os meus
também. Os meus também. Rimos, e exclamamos subitamente em conjunto: que lindo.
Fui dizer-lhe que me haviam levado os livros do
quarto. Estava igual a sozinho. Absolutamente sozinho a noite inteira. E ela
respondeu: isso é feio. Sabia bem que importância tinham para mim as histórias.
Ela perguntou: e agora? Eu respondi: passo os dias à espera dos intervalos para
ler um bocadinho. Passo as noites a sonhar à pressa para poder acordar e voltar
a ler. Ela respondeu: sonhar à pressa é uma pena.
Quando eu sonhava que lia, acordava. Parecia um
castigo. Era comum, subitamente, que eu me esquecesse de tudo durante os
intervalos. Corria para os bancos no lado da frente do colégio, à vista dos
janelões principais, e aí deitava os olhos às letras e a alma inteira à
imaginação. Quando era hora de entrar, tantas vezes algum colega vinha
cutucar-me. Diziam: anda, seu distraído. Anda embora.
Um dia, ninguém me cutucou. Fiquei apenas
caminhando dentro de mim mesmo, o que era diferente da solidão.
A professora mandou dois rapazes aos janelões da
frente a chamar por mim. Assim chamaram. Mas eu, juro muito, não os ouvi.
Voltaram para dizer à professora: parece que se
mudou para dentro do livro porque não ouve a nossa voz. Usámos os binóculos da
sala de ciências e vimos bem, senhora professora. Ele sorri. Está feliz.
Isso levantara o problema de saber como trocar a
felicidade pelo regresso à aula.
estamos em 2023. então faz, no mínimo 5 anos, que esse conto me espera pra abrir a porta e me convidar pro livro todo. que lindo! me lembrei de Manoel de Barros, de Mario Quintana, do prazer do sonho de liberdade, e esse frescor nessa manhã de domingo. que lindo! que lindo!
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