5 de julho de 2019

Biblioteca por Afonso Cruz


        Tenho do meu pai um património genético, evidentemente. Sorrio como ele, os cabelos que não desistiram de viver no seu habitat natural quiseram ficar brancos, as nossas mãos têm veias salientes, os olhos são de cor duvidosa, meio castanhos meio verdes. Mas, muito mais importante do que o que as nossas células partilharam, foi o caminho percorrido pelas nossas almas. O sótão do meu pai tinha livros, assim como a sua educação. Cresci a ler a sua biblioteca. A ler aquilo que ele leu, a gostar dos mesmos livros. É outro tipo de genética, a cultura. Os blocos construtores da sua identidade foram os mesmos que serviram como matéria-prima daquilo que sou hoje. As minhas verdadeiras células são os livros que ele me fez ler, os mesmos pensamentos, os mesmos capítulos, as mesmas frases. Mastigámo-las de maneira diferente, é certo, mas foram os mesmos nutrientes. Essa herança cultural diz-me mais do que partilhar a cor dos olhos, sinto-me mais próximo dele quando citamos o mesmo autor do que quando nos vemos ao espelho. No Dia do Pai nunca lhe ofereço nada, excepto a felicidade de sentir, quando olho para ele, que as nossas referências culturais são as mesmas. E sei que, com isso, somos muito mais da mesma família. Também sou pai. Olho para o meu corpo a envelhecer a cada dia e penso no que poderei deixar aos meus filhos além da calvície e da cor dos olhos. É nessa altura que tenho uma esperança infinita nas prateleiras lá de casa, e, tenho certeza, terei a felicidade imensa de receber como prenda do Dia do Pai , o sentimento de que partilhamos as mesmas referências.

in Jalan Jalan - Uma Leitura do Mundo, Afonso Cruz (pp. 606,607)